Em 1571, aos 38 anos, Michel de Montaigne retira-se em seu castelo da Dordonha, oeste da França, para passar, segundo ele, os poucos anos que lhe restam a viver. Convencido de que o espírito ocioso se perde, vagueando sem freio no vasto campo da imaginação, ele passa a escrever tudo o que lhe vem à mente. Esta é a gênese de sua obra, segundo o próprio Montaigne conta no Ensaio VIII do Livro I: 'Sobre a Ociosidade'.
A obra que passou à posteridade sob o título de Ensaios - ou Os Ensaios - é um conjunto de três livros, contendo reflexões filosóficas, anedotas históricas e detalhes autobiográficos. O todo, já bastante variado e mutante, vem recheado de citações dos grandes nomes da Antiguidade, em latim, em sua maior parte. São 107 ensaios de tamanho variado, perfazendo algo em torno de 1500 páginas. Em 1580, em Bordeaux, são publicados os dois primeiros livros e em 1588, o terceiro.
Um livro de boa fé, como o próprio Montaigne declara em seu prefácio, no qual se mostra sem artifícios. Escrevendo sobre si mesmo, e sobre tudo o que é essencialmente humano Montaigne cria o gênero que dá título a seu livro: o ensaio.
Desde sua primeira edição em 1580, até os dias atuais, Montaigne é o autor francês do século XVI mais lido, citado e traduzido. Seus ensaios vêm sendo publicados ao longo desses quatro séculos quase sem interrupção.
O exemplar de Bordeaux
Entre 1571 e 1592, ano de sua morte, Montaigne corrige e modifica incessantemente sua obra. Quando em vida, ele está à frente de quatro edições:
1580: livros I e II;
1582: livros I e II e adições;
1587: livros I e II modificados;
1588: livros I, II e III.
A partir de seu próprio exemplar de 1588, Montaigne modifica, corrige e aumenta seu texto. Este exemplar, encontrado após sua morte, recebeu o nome de Exemplar de Bordeaux, contendo inúmeras adições do próprio punho de seu autor.
Da amizade nasce o livro
Os Ensaios são também um livro de luto. Em 1563, Montaigne perde seu amigo Étienne de La Boétie, que morre prematuramente aos 32 anos. Foram cinco anos de uma rara amizade, profundamente vivida. La Boétie é o autor, aos 18 anos, do "Contr'Un", o conhecido e atualíssimo "Discurso da Servidão Voluntária". Em 1571, Montaigne publica parte da obra de La Boétie: algumas traduções do grego e poemas de sua autoria.
Em "Da Amizade", um dos ensaios mais conhecidos de Montaigne, o autor escreve:
Menandro, poeta da Antiguidade, dizia que podia dar-se por feliz aquele que encontrasse não fosse senão a sombra de um amigo. E tinha razão em dizê-lo, sobretudo se a ele próprio tenha sido dado conhecer tal experiência. Pois, na verdade, se comparo todo o resto de minha vida, que graças a Deus, foi suave, fácil, e - exceto pela perda de um tal amigo - livre de graves aflições, plena de tranquilidade de espírito, pois contentei-me com o que me deu a natureza e minha condição social, sem buscar nada além disso, se a comparo, dizia, aos quatro anos durante os quais foi-me concedido usufruir da companhia e da agradável personalidade de La Boétie, todo o resto de minha vida não é senão fumaça, uma noite obscura e tediosa. Desde o dia em que o perdi, arrasto-me lânguido, e mesmo os prazeres que se me oferecem, ao invés de me consolarem, apenas reforçam a dor de sua perda. Em tudo éramos a metade um do outro: parece-me que lhe roubo sua parte. Estava tão acostumado a ser dois em tudo, que me parece agora ser tão somente metade.
O Discurso da Servidão Voluntária
Abaixo, um excerto do 'Discurso da Servidão Voluntária' de Étienne de La Boétie, escrito por volta de 1548, quando seu autor tinha somente dezoito anos:
Gentes miserandas, povos insensatos, nações apegadas ao mal e cegas para o bem!
Assim deixais que vos arrebatem a maior e melhor parte das vossas riquezas, que devastem os vossos campos, roubem as vossas casas e vo-las despojem até das antigas mobílias herdadas dos vossos pais!
A vida que levais é tal que (podeis afirmá- lo) nada tendes de vosso.
Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres, das vossas famílias e das vossas vidas; e todo esse estrago, essa desgraça, essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos, mas de um só inimigo, daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós, por amor de quem marchais corajosamente para a guerra, por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas.
Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes.
Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?
Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas?
Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos?
Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha? Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência?
Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos?
Semeais os vossos frutos para ele pouco depois calcar aos pés. Recheais e mobiliais as vossas casas para ele vir saqueá-las, criais as vossas filhas para que ele tenha em quem cevar sua luxúria.
Criais filhos a fim de que ele, quando lhe apetecer, venha recrutá-los para a guerra e conduzi-los ao matadouro, fazer deles acólitos da sua cupidez e executores das suas vinganças.
Matai-vos a trabalhar para que ele possa regalar-se e refestelar- se em prazeres vis e imundos.
Enquanto vós definhais, ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrear-vos.
Comments